Déficit de natureza ameaça saúde física e mental das crianças

Especialistas defendem respiros verdes em grandes cidades para amenizar danos. Isabela Palhares SÃO PAULO No meio de uma das regiões mais movimentadas

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Especialistas defendem respiros verdes em grandes cidades para amenizar danos.

Isabela Palhares

SÃO PAULO

No meio de uma das regiões mais movimentadas de Santo Amaro, na zona sul de São Paulo, uma escola municipal criou uma pequena agrofloresta. Cercada por comércios e em frente a um terminal de ônibus, a área se tornou um “respiro verde” no meio do barulho dos carros e buzinas.

A agrofloresta da Emei (Escola Municipal de Educação Infantil) Borba Gato nasceu há pouco mais de três anos, onde antes estava um terreno baldio que acumulava árvores condenadas. A ideia de criar a mini floresta veio não só da necessidade de recuperar o espaço abandonado que trazia uma série de problemas para a escola, mas também de proporcionar às crianças um maior contato com a natureza.

“Assim como a maioria das crianças de São Paulo, nossos alunos moram em apartamento ou casa sem quintal. No máximo, elas tinham contato com a natureza ao ir para um parque,” mas essa vivência precisa ser diária”, conta Priscila Arce, 38, diretora da escola.

Alunos cuidam da horta montada no meio da agrofloresta da emei Borba Gato, em Santo Amaro, na zona sul de São Paulo – Eduardo Knapp/Folhapress

A preocupação da diretora da escola vem de encontro com o que pesquisas têm identificado: o contato cada vez mais restrito com a natureza prejudica o desenvolvimento físico e psicológico das crianças. Com eventos climáticos extremos se tornando mais frequentes no planeta, essa ameaça às crianças tende a se agravar.

A solução encontrada pela escola segue uma tendência que tem ganhado força em grandes cidades do mundo, de criar pequenas áreas verdes em regiões muito urbanizadas. Sem demandar grande investimento, esses espaços podem proporcionar um contato mais frequente e benéfico com a natureza.

Foi o que aconteceu na Borba Gato. Em apenas três anos, as crianças passaram não apenas a colher acerola, amora, banana e verduras da agrofloresta, mas o espaço também mudou as atividades e a forma de ensinar da escola. “Assim como a natureza tem o tempo dela, nós passamos a entender melhor o tempo das crianças, dando mais liberdade para desenvolverem as atividades”, conta Priscila.

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Os alunos, por exemplo, têm aulas no meio da horta, onde os troncos das velhas árvores condenadas se tornaram mesa e banquinho. Também têm liberdade de deixar as salas no meio das aulas para brincar quando estão com dificuldade de manter a concentração.

O maior contato com a natureza também levou a escola a praticamente se livrar de todos os brinquedos de plástico. “As crianças foram perdendo o interesse nesses brinquedos quando começaram a brincar mais livres. Foi um processo que nasceu delas. Elas passaram a se entreter mais brincando com folhas, gravetos, pedras que encontram nos espaços da escola.”

Elas também passaram a demonstrar menos interesse por atividades online propostas pela escola, como nas lições que precisam usar tablet ou computador.

Contato frequente com a natureza favorece o desenvolvimento infantil

Um relatório publicado pelo Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), no ano passado, apontou a necessidade de assegurar a todas as crianças o acesso a espaços verdes. Segundo o documento, elas devem ter uma dessas áreas acessíveis a uma distância caminhável de suas casas.

“Quanto maior e rotineiro for o contato das crianças com a natureza, maiores são os benefícios. Por isso, a gente defende uma política que invista no conceito de ‘natureza próxima’, ou seja, que as crianças tenham perto de casa ou na escola um espaço, ainda que pequeno, para ter essa vivência”, explica Maria Isabel de Barros, especialista em Crianças e Natureza do Instituto Alana.

Esse contato próximo com a natureza é, no entanto, uma realidade muito distante da maioria das crianças de São Paulo. Na média, a cidade tem 54% de seu território coberto por áreas verdes, mas esses espaços ainda são muito concentrados. Dos 96 distritos paulistanos, 83 têm menos da metade de sua área com cobertura vegetal —desses, 60 não têm nem um quarto de cobertura.

“Grandes cidades precisam investir para que todos tenham um pedacinho de natureza perto. Não podemos só ter grandes parques, como o Ibirapuera ou Villa-Lobos, que as pessoas só conseguem chegar de carro ou ônibus e acabam não indo com a frequência que é importante, principalmente, para crianças”, diz Maria Isabel.

Segundo o relatório do Unicef, estudos internacionais identificaram que crianças com contato regular com áreas verdes têm, por exemplo, níveis menores de hormônios do estresse e pressão arterial mais baixa.

Outras pesquisas também identificaram os benefícios no desenvolvimento de habilidades motoras. Crianças que brincam.

diariamente em áreas verdes, em vez de playgrounds, apresentaram melhores resultados em testes de equilíbrio e coordenação motora.

Também cita vantagens para o desenvolvimento socioemocional, já que, em áreas verdes, elas têm a oportunidade de interagir com mais crianças, o que estimula habilidades sociais diferentes.

Os benefícios citados pelo documento passaram a ser comprovados pela equipe pedagógica da Borba Gato nos últimos anos. Em geral, as crianças que chegam à escola aos 4 anos não têm o hábito de conviver diariamente com a natureza e passam por um rápido período de adaptação.

“Algumas crianças chegam com medo de se sujar, não gostam de pôr o pé direto na areia ou têm receio de subir nas árvores. Em poucas semanas, elas perdem o medo e passam a adorar esse contato. É uma mudança tão rápida e positiva, que nos deixa cada vez mais convictos de que elas precisam estar no meio da natureza”, conta Priscila.

A série Infância e Clima recebeu apoio do programa “Early Childhood Reporting Fellowship”, do projeto The Dart Center for Journalism and Trauma, da Columbia University.

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