Jornalista e escritor
Um golpe para o cinema
O mundo avançou, e os golpistas recuaram no tempo, não chegam aos pés de seus antecessores do século passado
25/11/2024 00h05 Atualizado há 10 horas
Presenciei dois golpes militares no século XX. Primeiro foi no Brasil; nove anos depois, no Chile. Traços comuns: ocupação de pontos estratégicos, deslocamento de tropas, prisões em massa. Não houve planos de assassinato do governante deposto, embora Allende tenha morrido resistindo no Palácio de La Moneda.
No século XXI, os golpes de Estado tomaram outra forma. Há uma batelada de livros descrevendo-os. Agora, a democracia é devorada por dentro. O Poder Executivo aos poucos neutraliza Congresso e Judiciário e passa a mandar sozinho. É possível ver mais ou menos isso na Hungria ou na Venezuela.
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O plano de golpe revelado na semana passada pela Polícia Federal representa um brutal retrocesso. Ele começaria com a morte do ministro Alexandre de Moraes, de Lula e Geraldo Alckmin. Teria características do século XIX, assim mesmo em países muito atrasados. Isso revela que o mundo avançou, e os golpistas, criando uma situação grotesca, recuaram no tempo, não chegam aos pés de seus antecessores do século passado.
Apesar da condenação inequívoca, seria interessante conhecer mais detalhes para contar a história. Há pontos ainda obscuros. O projeto era matar e envenenar. Matar a tiros — usando fuzis, pistolas e até um lança-granadas — é uma coisa. Envenenar é outra, em termos de planejamento. Você não lança uma granada envenenada; de um modo geral, usa outros métodos. A mais avançada prática no mundo talvez seja a da Rússia. Um simples chá pode destruir o oposicionista. Tanto o polônio-210 quanto o tálio são muito usados pela polícia política de Putin. Eis a pergunta sobre o envenenamento: qual era o plano, qual sua viabilidade no tempo escolhido, o mês antes da posse?
Não tivemos acesso ao esquema completo, escrito pelo general Mário Fernandes. Foram divulgadas apenas algumas de suas mensagens. Nelas, ele repete a palavra “porra” 53 vezes. Se continuasse produzindo textos, acabaria aumentando o índice de natalidade nacional.
Também não ficou claro como seria o assassinato de Moraes. Houve um olheiro colocado perto do restaurante Gibão, especializado em carne de sol. Ele reclama de falta de táxi; parece que esqueceram que não se pegam táxis na rua em Brasília. É preciso telefonar. O agente era Gana, os outros eram Áustria, Japão, Brasil, nomes de países. Creio que se inspiraram na série “Casa de Papel”, onde se usavam nomes de cidades: Paris, Tóquio.
As armas mencionadas ainda não apareceram. Eram fuzis pistolas, lança-granadas e uma bazuca. É um arsenal considerável. Como se encaixa no planejamento? Se usassem tudo, matariam ministro, motorista, segurança e eventualmente algum adepto de carne de sol próximo ao restaurante Gibão.
À medida que as investigações avançam, creio que algumas dúvidas serão esclarecidas para que se possa montar uma história mais detalhada. Há coisas que só alguém pensando no futuro roteiro pode perguntar. Por exemplo: você envenenaria o presidente e o vice ao mesmo tempo? Caso houvesse espaço entre um e outro, não seria possível que o sobrevivente desconfiasse e tomasse precauções?
Só o general no seu labirinto poderia responder a essas perguntas. Certamente diria:
— Não me venha com detalhes, porra.
Mas o trabalho da PF continua, desvendando toda a trama, encontrando o escalão superior do golpe e criando as condições para que se conte a história de forma precisa.
A serie televisiva espera Gana, Áustria, Japão, Brasil, com a mesma atenção que deu a Paris, Tóquio, Londres, na “Casa de Papel”.