O regime de Maduro não vai deixar o poder, o que deixa Lula e seus contemporâneos
nas Américas com uma pergunta terrível
Por Sean Burges (Interesse Nacional )
17/08/2024 | 09h39
Para surpresa de ninguém, o autocrata-chefe venezuelano Nicolás
Maduro manipulou a eleição presidencial de 28 de julho para permanecer no cargo. A
condenação da maior parte do mundo foi igualmente previsível, mas também tocante
em suas esperanças ingênuas de que a pressão internacional trará mudanças.
O regime de Maduro não vai a lugar nenhum, o que deixa Lula e seus
contemporâneos nas Américas com uma pergunta terrível: é mais eficaz simplesmente
conter o Estado falido na Venezuela ou deve-se estabelecer um precedente com uma
invasão pró-democracia no país?
Um retorno muito rápido à teoria nos ajuda a explicar por que o mundo está tão
impotente para precipitar mudanças positivas na Venezuela.
Imagem mostra o ditador venezuelano Nicolás Maduro em entrevista coletiva no
Supremo Tribunal de Justiça, onde apresentou procedimento para auditoria da eleição,
em 9 de agosto. Instituição é cooptada pelo chavismo Foto: Matias Delacroix/AP
A América Latina da década de 1980 foi uma espécie de laboratório para investigar
transições do autoritarismo para a democracia. Os estudiosos analisaram as diferentes
transições extensivamente, resultando em inúmeros estudos que continuam a oferecer
lições inestimáveis para os dias de hoje, mesmo que os formuladores de políticas
pareçam relutantes em aventurar-se nas prateleiras empoeiradas da biblioteca para
recuperá-los.
Talvez o livro mais perceptivo (e também curto) seja o volume quatro da
série Transitions from Authoritarian Rule publicado em 1986. Popularmente conhecido
como o Livro Verde pela cor da sua capa e subtitulado Tentative Conclusions About
Uncertain Democracies, o argumento escrito por Guillermo O’Donnell e Philippe C.
Schmitter baseou-se nos três outros volumes da coleção para explicar quais condições
precisam estar presentes para que uma transição democrática comece e tenha
sucesso.
Como explicam os autores, existem dois grupos principais em qualquer regime
autoritário. Os “dictaduros”, ou linha-dura, estão profundamente comprometidos em
manter o poder e resistirão a qualquer tentativa de removê-los do cargo.
Por outro lado, os “dictablandos”, ou moderados, acreditam que permanecer no cargo
não é do interesse pessoal deles, nem do interesse militar/país, e, portanto, apoiam
uma transição controlada para o governo democrático. O autoritarismo persiste
quando os “dictaduros” mantêm a vantagem; a democratização ocorre quando os
“dictablandos” estão em ascensão e conseguem convencer seus colegas a ceder o
poder.
O trabalho de O’Donnell e Schmitter enfatiza dois problemas imediatos para
aspirantes a democratas na Venezuela, bem como uma mudança estrutural crítica na
economia venezuelana para outros países que defendem a abertura política lá.
Primeiro, quase não há mais “dictablandos” no regime venezuelano. Um quarto de
século de governo chavista praticamente expurgou os liberais da administração
bolivariana. Pior, aqueles democratas que restam nas instituições e na sociedade
venezuelanas estão atualmente sendo capturados e encarcerados pelas tropas de
choque de Maduro.
Em segundo lugar, supondo que um pequeno grupo de “dictablandos” tenha
conseguido sobreviver dentro das Forças Armadas – e são as Forças Armadas que,
em última análise, determinarão se o regime permanece ou cai – as circunstâncias
atuais sugerem que eles não terão sucesso em convencer os “dictaduros” a suavizar
sua posição. Afastar-se do poder traria, no mínimo, uma perda de privilégio e riqueza
pessoal, o que, dado o estado atual da economia venezuelana, não é algo que a
maioria dos atores racionais consideraria. Mais francamente, ceder o poder
atualmente não tem nenhuma vantagem para Maduro e seus “dictaduros”.
A comunidade internacional conseguiu pressionar as ditaduras latinoamericanas porque as elites econômicas domésticas que as sustentavam
precisavam de acesso aos mercados regionais e globais. (…) Nada dessa lógica
econômica se aplica à Venezuela hoje.
Como foi o caso nas décadas de 1970 e 1980, a comunidade internacional está ciente
desse dilema. A pressão política externa foi um componente crítico para tirar do poder
ditadores tão diversos quanto Pinochet no Chile e Stroessner no Paraguai. A pressão
sobre os atores econômicos domésticos pela comunidade internacional traduziu-se
em apelos locais das elites por mudança de regime em setores dependentes de
vínculos externos.
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O desafio hoje é que a alavancagem usada no século passado não está disponível na
Venezuela de hoje.
A comunidade internacional conseguiu pressionar as ditaduras latino-americanas
porque as elites econômicas domésticas que as sustentavam precisavam de acesso
aos mercados regionais e globais. Mesmo no caso do regime criminoso de Stroessner
no Paraguai, o acesso ao mercado brasileiro permaneceu crucial, permitindo que os
oficiais em Brasília obrigassem a adoção de uma democracia formulaica em 1989 e
um governo representativo mais substantivo ao longo da década de 1990. Nada dessa
lógica econômica se aplica à Venezuela hoje.
A ditadura de Maduro é sustentada por uma teia complexa de atores militares,
gangues criminosas e facções de grupos paramilitares estrangeiros, como ELN e Farc
da Colômbia. São esses atores que controlam a produção e o tráfico de cocaína, a
mineração e os últimos vestígios de uma indústria petrolífera em rápida desintegração,
além de uma série de outras empresas criminosas domésticas.
Imagem de 8 de agosto mostra vigília de opositores em Caracas. Oposição alega
fraude nas eleições do país Foto: Yuri Cortez/AFP
A pressão econômica do tipo visto na década de 1980 simplesmente não se aplica a
essas empreitadas criminosas, isolando os poderosos na Venezuela da condenação
internacional e das sanções econômicas. Onde a pressão internacional poderia
importar, como nas exportações de petróleo e ouro, existem muitas alternativas com
agentes baseados em países como Rússia, Irã, Turquia e Emirados Árabes Unidos.
Isso deixa as vozes do hemisfério ocidental que clamam por democracia – sejam elas
as vozes quietas nos bastidores da equipe de Lula ou o mais confrontador diretamente
Boric no Chile – gritando ao vento.
Governos como o de Lula no Brasil, portanto, enfrentam uma decisão desconfortável:
é mais barato conter a crise ou invadir? Pior, dada a criminalização maciça do Estado
e da economia venezuelanos, a remoção de Maduro poderia empurrar o país para o
abismo de um verdadeiro estado falido?
Para o futuro previsível, parece que levar a democratização à Venezuela exigirá uma
intervenção direta e aberta de algum tipo. Não apenas essa abordagem é contrária à
tradição histórica nas Américas, mas impor a democracia externamente também é um
negócio caro, demorado e incerto. A questão então é se os custos da instabilidade
política, outra fuga em massa, colapso econômico, criminalidade crescente e
degradação ambiental acelerada na Venezuela subirão a ponto de a comunidade
interamericana ser forçada a passar da retórica à ação concreta.
Por enquanto, uma invasão democratizante da Venezuela é uma opção que deve ser
deixada na gaveta. Os esforços devem ser dedicados à criação de “dictablandos”,
fornecendo garantias àqueles em posição de conduzir a mudança de regime interno
de que sua riqueza e privilégio sobreviverão à democratização, mesmo que isso
signifique viver seus dias em uma cobertura no Rio de Janeiro ou em um condomínio
em Miami.
Esperamos que essas sejam as promessas que Celso Amorim está sussurrando aos
seus colegas em Caracas. O que parece quase completamente certo é que a
democracia permanece uma miragem distante para o povo da Venezuela.
Opinião por Sean Burges
Sean Burges é colunista da Interesse Nacional e professor de estudos globais e
internacionais na Carleton University. É autor dos livros ‘Brazil in the World’ e ‘Brazilian
Foreign Policy After the Cold War’.